domingo, 3 de julho de 2011

O fim

Tateei a cama à procura dele; o sono não me deixava abrir os olhos e eu quase não podia me mexer. Meus dedos encontraram o travesseiro ao meu lado e ele estava vazio. Isso já não estava ficando cansativo demais? Desgastava a nós dois, o pouco que compartilhávamos estava a dissipar-se.
Deixei que isso corresse por tanto tempo que agora eu achava que não conseguiria ver acabar. Pensei que ele aprenderia a me amar aos poucos, mas nunca percebi que era esse pensamento idiota que me arruinaria. Alguém como ele nunca seria capaz de amar um ser tão egoísta quanto eu. Devia mesmo tê-lo deixado ir, mas nós dois sabíamos que eu não era forte a esse ponto, sabíamos que eu necessitava dele.
– Ei, dorminhoca, bom dia. – O senti tocar meu ombro e me virei vergonhosamente pra encará-lo. Por que ele sorria quando estava tão infeliz por dentro?
– Não sorria pra mim desse jeito – Minha mão se ergueu para lhe cobrir a boca. É, ele era mesmo bonito, e isso definitivamente não podia ser uma desculpa para tê-lo por perto. Queria poder parar de amá-lo dessa forma tão intensa, queria não sentir calafrios quando ele olhava pra mim.
– Boba. – Ele disse, tomando minha mão para beijar – Já tomou seu remédio hoje? – com um rápido movimento, pegou da gaveta do criado-mudo a minha caixa de comprimidos e me entregou o de hoje. Um copo cheio d’água já estava posicionado em cima do mesmo móvel e eu não demorei a terminar o meu ritual diário. – Não ganho um beijinho?
Neguei – Nem escovei os dentes ainda, Jake.
– Não faz mal.
Recebi um beijo delicado nos lábios, a sensação me matando por dentro. Não conseguia ignorar esse sentimento. Sedenta, lancei meus braços em seu pescoço e o puxei para mais perto. Meus lábios clamavam pelos dele; eu o beijei forte, mas ele não sabia mais fingir tão bem. Sei que também não o fazia sofrer, mas definitivamente não o fazia feliz. Queria saber se eu gostava mais dele ou de mim; só uma das respostas me faria libertá-lo do peso que eu era, só uma das respostas o faria feliz, mas eu ainda não estava pronta para escolhê-la.
– Desculpe – disse; Jake franziu a testa.
– Pelo quê?
– Pelo beijo. Acabei esquecendo que devo estar com hálito de ogro. – Sorri levemente, fingindo que era esse mesmo o motivo do perdão.
Sentei na cama, me espreguicei , penteei os cabelos com os dedos pra lhe controlar o volume, e durante tudo isso Jake não deixou de me encarar. Sorria no início, mas relaxara sem notar e agora parecia sem expressão alguma. Não, ele não pensava no porquê de ter se casado com essa mulher fraca e sem graça, porque eu o conhecia pra saber que – apesar de ser a atitude plausível – ele não pensava nisso. Ele tinha essa enorme fortaleza ao seu redor que lhe fazia guardar todas as dores e arrependimentos longe do seu exterior. O que ele externava eram as preocupações do trabalho, as contas altas de todo mês, a quantidade de remédio que eu precisava tomar.
Levantei andando até o banheiro – Volta pra o almoço hoje?
– Não vou sair para precisar voltar.
– O quê? - Parei – E o trabalho?
Jake parou também e veio até a porta. Nem sequer estendeu a mão pra me tocar, mesmo que eu estivesse usando uma das minhas camisolas favoritas. Será que agora eu era feia pra ele também?
– Tirei o dia todo de folga – Ele disse, me jogando aquele sorriso que eu já não sabia se amava ou se tinha nojo. Talvez os dois, se fosse possível.
– Por quê? Você deve ter milhares de pacientes para cuidar.
– Pois é. Estou cuidando da mais especial de todos eles.
Uma frase assim sem estar acompanhada ao menos de um beijinho na testa? Por que ele cansara de fingir? Eu não era assim tão idiota para não perceber. Concordei com a cabeça e fechei a porta do banheiro na cara dele, e logo me arrependi: ele poderia estar querendo reavivar – se é que um dia já foi viva – a chama entre nós. Afinal de contas ele era um rapaz tímido e talvez estivesse com vergonha de me tocar quando planejava um dia de intimidade mental entre nós. É, talvez fosse isso.
Tomei um bom banho, coloquei o meu melhor perfume, roupa limpa, recém lavada. O cheiro de café da manhã estava no ar, cheiro das panquecas maravilhosas que ele sabia fazer. Entrei na cozinha me atrevendo a pôr um sorriso no rosto.
Jake olhou pra mim – Nossa, você parece bem.
– Eu estou. Acordei com umas idéias na cabeça, mas elas já foram embora. Como você está, meu amor? – Perguntei e fui até a geladeira pegar um iogurte desnatado pra mim enquanto ele me respondia. Iogurte com mel, escolhi; e logo depois disso fechei a geladeira. Ali, bem na minha frente, estava o pequeno calendário de papel onde uma anotação em caneta vermelha estava feita no dia de hoje com minha própria letra. “Aniversário de morte do papai.”
Falei outra vez – Jake, você sabe que dia é hoje?
Ele virou-se para mim. Com um movimento rápido desligou o fogão e veio me puxar para seu peito – Sei, eu sei, sim. Você tem certeza que está bem?
– Foi por isso que ficou em casa? – Sibilei – Tava com medo que eu...
– Eu não podia te deixar sozinha hoje. Olhe só, Laura, podemos sair pra nos divertir aonde você quiser; podemos fazer um piquenique. Que tal? Faço tudo pra não te deixar triste.
Oh, ele estava tão errado! Ele pensava que podia me proteger de todas as grandes decepções da vida, achava que assim eu não correria o risco de ter um ataque do coração, porque ele se culparia se algo me acontecesse sem que ele pudesse evitar. Mas ele não percebia que eram as pequenas coisas que estavam me matando. Isso tudo estava desgastando meu coração.
Desde o início eu notei nele a necessidade de melhorar o mundo, desde que eu entrei pela porta do seu consultório percebi que era ele que faria de tudo para não me deixar morrer com meu problema cardíaco. Tão gentil como era eu não pude resistir, e de paciente e médico viramos amigos. Alguns encontros casuais, algumas trocas de telefonemas inocentes; acabamos por trocar uns beijinhos numa certa noite. Mas ele percebeu que eu já havia me apaixonado por ele e tentou me avisar na consulta que marquei para apenas alguns dias depois. Então foi ali, ali mesmo, na frente dele, que meu coração disparou e as coisas saíram do controle. Quando acordei, ele estava ao meu lado, me pedindo desculpas e prometendo que nunca mais me deixaria.
Eu vi a garota da casa ao lado chorar quando me mudei pra cá depois de casar com ele. Eles já tinham sido namorados, compartilhavam um amor que vinha da infância; eu, no meu egoísmo, fui capaz de colocar um fim nesse amor. Para quê? Nós éramos três infelizes agora.
– Jake? Eu quero que você se arrume agora e vá ao trabalho. Você não pode me mimar desse jeito, eu não sou tão criança assim. Vá embora.
– Não, Laura; vou ficar.
Respirei fundo, tentei voltar a mim. Ele que fizesse o que queria fazer; eu não podia ligar para isso. No ponto em que estávamos já devia ter me acostumado com tal comportamento ridículo, mesmo que doesse. O empurrei para longe de mim e corri para o lado de fora; o verde claro na grama refletindo a luz do sol. Parei, só precisava de ar.
– Bom dia, Laura.
Virei-me pra ver e achei nossa vizinha. Linda, loira, solteira; cuidava das flores – Bom... – Não consegui terminar a frase, ao invés disso chorei. Foi quando senti braços ao meu redor, uma voz grossa e calma me sussurrando que estava tudo bem. Não, não estava; e enquanto ele me levava de volta para dentro eu encarei a mulher do outro lado da cerca.
Jake me fez sentar à mesa da cozinha, secou meu rosto com os polegares e me trouxe o prato de panquecas, me trouxe sucos e biscoitos, sentou perto de mim para me encarar com um sorriso.
O olhei – Por que você não diz logo?
– Ham?
– Não diz de uma vez que se casou comigo por pena.
– Mas...
– E ainda consegue mentir – Espetei a panqueca com um garfo – Consegue ser frio, insensível.
– Insensível? Como pode me acusar disso? Faço tudo por você!
– Menos ser sincero. Era só o que eu queria.
Vi então a ira tomar conta do Jake. Seus olhos cresceram e seu rosto mudou de cor em segundos, mas ele percebeu que me encolhi para receber o grito que brotava em seu peito e logo se controlou, limpou os olhos com o nó dos dedos, pediu desculpas. Paramos os dois; mordiscamos o café da manhã. Uma parte de mim estava esperando que ele tomasse coragem para admitir, mas ele não falou mais nada; não negou minha acusação também. Se ele soubesse que naquele momento o meu coração tinha começado a doer ele com certeza estaria tomando todas as providências para me fazer melhorar. Sem querer deixar que ele soubesse, deixei a cozinha e subi para ir pro nosso quarto.
– Laura, espere. – Jake pediu, me seguindo. Apressei o passo para subir as escadas, mas ele me alcançou quando cheguei ao topo dela. – Desculpe, não quis gritar com você.
– É claro que você queria! Quer gritar comigo há três anos! Deixou que isso fosse longe demais e olha onde estamos agora! Eu não ia morrer se você não estivesse ao meu lado naquela época, não teria ficado tão dependente de você se tivesse me contado que não me amava desde o início. A culpa é toda sua!
Jake balançava a cabeça, até parecia chorar junto à mim. – Para de dizer bobagem!
– Bobagem? Se o que eu disser é mentira então olha nos meus olhos e diz que ama. Diga!
Meu peito reclamou quando eu o vi olhar para o chão. Nós dois sabíamos que ele não podia mais esconder a verdade. Mas ao mesmo tempo em que o queria ouvir dizer as três palavras, mesmo que fosse mentira, eu queria que ele acabasse com isso de uma vez.
– Laura, eu me preocupo com você, estou do seu lado porque quero poder te proteger. Será que isso não basta?
– Não.
Sem pensar, fechei os olhos e o empurrei para longe de mim. Sem ser nada mais do que egoísta eu só quis saber de me ver livre dos braços que me prendiam, o quanto antes. Mas meus olhos se abriram quando um grito de dor que não saiu dos meus lábios interrompeu o momento; ficaram ainda mais abertos quando o grito cessou, quando o corpo dele alcançou o andar de baixo depois de ter rolado pelas escadas.
Foi quando eu pude ver que sem ele eu realmente não podia aguentar, foi quando eu percebi que ele estava certo e eu devia ter me contentado com sua preocupação, devia ter aceitado o fato de que nada melhor podia ser oferecido para uma mulher tão egoísta, mimada. Mas essas coisas não iam importar mais, meu coração estava declarando guerra à minha estupidez e agora eu só tinha que esperar.
Queria poder chorar sobre o corpo do homem que amei, mas eu estava chorando apenas pela dor que eu sentia me tomar, o que não deixava de ser culpa dele. É, a culpa era toda dele e seria meu nome a aparecer nos jornais amanhã; ninguém acreditaria que alguém tão bondoso como ele teria feito algo para me aborrecer.
Importava? Não. O observando ali, morto, imóvel; abominando minhas próprias mãos que lhe tiraram a vida; daquele jeito, eu só esperei pelo fim.

J.A.Nobel

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