terça-feira, 18 de setembro de 2012

A volta do filho pródigo

Notou-se cedo que ele era um imã de confusões. Ainda menino eram poucas as vezes que não voltava para casa com os joelhos ralados ou olhos roxos. Tinha sempre as ideias mais perigosas, era atraido pelos colegas aventureiros; nunca pelos cautelosos. Era criativo, brilhante, curioso, mas influenciável, porque gostava de ter a quem culpar se algo desse errado. E sempre dava.
Sua mãe sabia de todos os seus atributos e talvez por isso não conseguisse lhe largar o pé. "Ele tem imã para confusões", dizia quando alguém ousava se meter em seu estilo de educação para criticar seu zelo exagerado. Mas esse zelo se devia apenas pelo fato de que ela o conhecia bem demais. Ele tinha mesmo imã para confusões e se largasse dele por um segundo sabia que algo errado podia acontecer. O teve já fora de idade, era filho único, bonito como o pai. E zelava dele pela simples razão de amá-lo.
Ele às vezes não entendia, chegou a fugir dela por um tempo para livrar-se daquilo tudo, mas sua sina o acompanhou, e ele voltou aos braços dela depois de ter atingido o fundo do poço. Se destruiu, se perdeu, caiu em sofrimento. Percebeu que precisava do amor de sua mãe.
O menino cresceu, continuou se metendo em problema atrás de problema, e a cada um ele via a mãe chorar. Ela chorava de medo, medo por ele. Ele chegou a se ajoelhar na frente dela e prometer que não a deixaria. "Não conseguiria viver sem você", ele disse. E não importava o quanto soubesse que ele era inconstante, aceitou a promessa.
Mas então houve um dia em que ele se pegou olhando no espelho e percebendo que não se conhecia longe da asa de sua mãe. Não podia ficar ali para sempre, já era adulto e precisava caminhar com as próprias pernas. Precisava de alguns amigos - não dos aventureiros e destemidos, mas daqueles que encaram a aventura mesmo morrendo de medo - e de uma nova vida. Foi assim que, sem avisar, fugiu. Desapareceu, foi para onde não o encontrassem. Sabia que a estava decepcionando, mas foi mesmo assim.
E aquela mãe ficou esperando. Deixava ir a mil o coração a cada toque do telefone, chorava a cada vez que a campainha fazia barulho e procurava pelo rosto dele em cada multidão pela qual passava. Os anos se foram assim, e chegou um tempo que ela parou de esperar. Ficou louca, esquecida; perguntava o nome do marido três vezes no mesmo dia.
Sentada em sua cadeira de balanço que rangia a cada movimento, esqueceu que teve um filho.
E quando ele finalmente resolveu voltar, arrependido, ela não o conhecia mais e não quis um estranho em sua casa. Alguns dizem que ela fingia a loucura para não ter de lidar com os anos em que ele se manteve quebrando a promessa de que não a deixaria, não ter de lidar com o fato de que aquilo tudo que ele lhe dissera era mentira, aquilo de que não podia viver sem ela.
Mas se era fingimento, ela se manteve firme a ele até o fim. Não importava o quanto ele chorasse dizendo que a amava, ela não reconhecia mais aquela voz. E antes de morrer ela disse em voz alta: "vou, mas vou em paz, porque não deixei nenhuma alma para chorar por mim".

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Proclamação de paz

Tenho uma bandeira branca escondida debaixo da blusa, ando sobre os destroços da guerra que ainda não tem fim certo. Não se sabe se ainda restam inimigos espreitando atrás das árvores, não se sabe se existem minas terrestres enterradas sob o chão em que piso. Sinto as cicatrizes arderem e os músculos reclamarem do cansaço, só não posso parar enquanto não achar abrigo. Mas não tenho como saber se o primeiro que achar será um abrigo de tropas amigas ou não. O risco de ser capturada é pior do que a espera, sozinha.
E a bandeira continua bem guardada. Poderia simplesmente agitá-la enquanto ninguém estava olhando, mas os meus olhos ainda veriam esse gesto. Talvez tenha sido suficiente para mim ter me livrado da minha armadura no caminho - pensei diversas vezes em voltar, mas já andei demais. Não me importa que ter ocupado um braço com a função de guardar a bandeira branca me faça perder um pouco da agilidade e coordenação durante a caminhada: preciso saber que ela está segura.
Enquanto ando os cabelos me batem o rosto, vermelhos com a terra solta que se levanta, que teima em entrar nos olhos e dificultar a visão de alguns palmos diante de mim. As roupas rasgadas, sujas, e não reparei a falta de sapatos até pisar por acidente em uma poça d'água. Não exatamente água, mas lama, e uma lama gelada que instantaneamente me fez lembrar das longas brincadeiras de infância na terra molhada em dias de chuva. Parei e fechei os olhos, perdi os sentidos, relaxei.
Minha mão soltou-se da bandeira e ela despencou direto para a poça, manchando-se de vermelho e mudando de sentido. A apanhei e vi como se fosse sangue a terra vermelha que escorria por ela. O branco da minha bandeira estava indefinidamente extinto, sua ideia descansava longe de mim, e pensei se devia tê-la agitado pelo menos uma vez enquanto era branca. Percebi então que já o tinha feito. Percebi que enquanto andava, o tecido alvo da bandeira alisava minha pele, como se flamulasse por dentro do próprio abrigo que construí para ela.
A bandeira que agora sangrava ficou pelo caminho, porque abominei sua nova aparência e precisava deixá-la para trás. Chorei pela bandeira branca. Mas não lembrei que eu mesma estava naquele mesmo estado, suja de um sangue que não era meu, e, mais importante ainda, não percebi que se a tivesse trazido comigo, poderia ter usado minhas lágrimas para lavá-la.